quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

LAIKA - UM CONTO CONTRA A INDIFERENÇA!


PUBLICADO NA ANTOLOGIA DE CONTOS

“CACHORROS, CACHORRINHOS” – EDIÇÃO “HUGIN”- 2002

 
 
LAIKA, DEUSA DO ESPAÇO

CONTO DE: LUÍS PESSOA 

Alexander levantou-se, meio combalido e não deixou de mandar um grito, misto de alegria e dor:

  Laika, larga! Laika!

 
A cadela, olhos brilhantes e cauda ondulante, deu mais uma volta no ar e atirou-se de novo sobre o rapaz, deixando-o quase sem fôlego.

 Erik e Ludmila, sentados a um canto, fora do palco em que se desenrolava toda a acção, sorriam com as traquinices da cadela.

 Erik, achas mesmo que a Laika vai para o Espaço? – Interrogou Ludmila, com voz sumida.

 Creio que sim, ela está preparada para isso…

 A “luta” acabou e Alexander e Laika juntaram-se aos outros dois, ofegantes mas irradiando uma felicidade contagiante.

 

A história começara há algum tempo atrás, quando o pai de Erik apareceu em casa com a cadela, que prontamente foi adoptada, não só pela família, mas também por toda a vizinhança. Uma cadela banal, normal, mas transportadora de uma enorme carga: Fora seleccionada para ir ao Espaço.

 

O pai de Erik trabalhava no projecto espacial desde há alguns anos e fora-lhe incumbida a tarefa de encontrar o cão apropriado para essa aventura.

Escolhera Laika.

 Desde essa altura, Erik mostrava-se preocupado e as notas na escola sofreram uma acentuada queda, o que fez com que o pai tivesse uma longa conversa com ele, que se centrou, naturalmente, na situação da cadela.

 
O pai fez ver a Erik que a Laika não era dele, nem de ninguém, mas de todos os habitantes do Mundo e que ia cumprir uma missão que só estava ao alcance dos grandes heróis. Seria venerada para todo o sempre, como exemplo de heroicidade e abnegação, motivo de todos os orgulhos.

 Pai, a Laika vai voltar?

 
 Olha, filho… - longa hesitação perante aquele olhar quase suplicante de uma resposta positiva – ninguém pode dizer o que se vai passar…

 
Mas volta, pai?

 Sim, filho, vai voltar! – mentiu.

Os medos foram atenuados e tudo parecia correr bem, até ao momento em que Ludmila apareceu com a triste notícia:

 
Ouvi o teu pai dizer que nem sabe como é que te há-de contar que a Laika não pode regressar. Estás a ouvir, Erik, a Laika vai morrer lá em cima…

 
Não, nunca! O meu pai nunca me mentiu e não o ia fazer agora… Não acredito!

 

 Erik, juro-te que é verdade!

 
Temos de fazer alguma coisa! – interrompeu o Alexander. – A Ludmila não ia mentir ou brincar com isto. O teu pai não te contou tudo… Temos de esconder a Laika, levá-la para longe daqui, não sei… Talvez para casa da minha tia.

 
A angústia espalhou-se por aquela três criaturas e um milhão de hipóteses varreu, em turbilhão, aquelas cabecitas, ainda puras no pensar e ingénuas nos propósitos.,

 
É isso! – gritou Erik. – Vamos fugir com ela, apanhamos o comboio, escondemo-nos no furgão das cargas e vamos embora. Assim não a apanham!

 

 Boa, vai buscar a Laika, Alexander, enquanto eu preparo alguma coisa para comermos, nós e a Laika!

 

Cerca de quinze minutos depois, os três miúdos estavam prontos, com a Laika presa pela trela e decididos a tudo.

 
O pai de Erik não falara de grande aventura? Pois era o que ia acontecer, sem ter de mandar a Laika para o Espaço!

 

O sol já ia alto quando chegaram à estação de comboios. Ludmila morava ali perto e sabia os horários e as linhas de onde partiam todas as composições e assim não houve enganos nem complicações.

 

Horas depois, dois cenários se desenhavam: No comboio as crianças dormiam ao redor de Laika, em busca de um pouco de calor, que as temperaturas negativas e a falta de conforto, não propiciavam; Lá longe, umas centenas de quilómetros atrás, várias famílias procuravam-nos, tentando perceber o que os fizera largar tudo e partir.

 
Só o pai de Erik sabia…

 

Com o alarme dado, com todas as autoridades no seu encalço, porque eram apenas crianças com uma cadela, não foi particularmente difícil encontrá-los, lá longe, onde o gelo, a neve, a fome e o frio imperavam.

 

Numa última e desesperada tentativa, Erik falou com Laika e contou-lhe tudo, contou-lhe que a queriam mandar para o Espaço, que o pai lhe mentira e que ela jamais poderia regressar à Terra, que estava condenada à morte e que tinha de fugir a todo o custo.

 
Eles andam à nossa procura, não de ti, Laika! Vai embora, corre, esconde-te, procura um rapaz que te possa defender melhor que eu, vai embora!

 
As lágrimas escorriam pela face do garoto, perante a incredulidade dos polícias que presenciavam a cena, sem nada entenderem. Um deles chegou mesmo a simular um pontapé na cadela, para a afastar, mas sem êxito.

 
Acabaram todos recambiados para a origem, onde foram recebidos com natural alívio pelas famílias.

 
Meses depois, a 3 de Novembro de 1957, num dia muito frio, Laika cumpriu o seu destino trágico, ela que se recusara a fugir enquanto podia.

 
Durante uma semana inteira, Laika vagueou no Espaço, onde nunca estivera qualquer ser terrestre.

 
Durante todo esse tempo, três pares de olhos mantiveram-se dirigidos para o alto, para o céu estrelado, procurando o ponto luminoso, muito brilhante, que transportava a sua amiga.

 
Foi então que tudo acabou para Laika, quando ingeriu a sua última ração alimentar, que continha uma poderosa droga que a fez mergulhar no sono eterno e repentinamente, em toda a Terra, milhões e milhões de cães, lobos, coiotes, lancinaram os ares com uivos, enquanto o céu era atravessado por milhares de estrelas cadentes, numa homenagem à Deusa do Espaço.

 
Menos de três anos depois, a 19 de Março de 1960, os três amigos inseparáveis estavam de olhos no ar para assistir à partida de mais amigos seus, Belka e Strelka, dois alegres cães, que após um dia no Espaço, regressaram sãos e salvos, cumprindo-se a promessa feita pelo pai de Erik, de que todos os cães passariam a ter a hipótese de voltar e só se alguma coisa corresse mal, não regressariam, como veio a acontecer a 1 de Dezembro desse mesmo ano, quando Pchelka e Mushka viram a sua reentrada na atmosfera falhada e por lá morreram…

 
Heróis ou apenas cães obrigados a cumprir um destino que os homens lhes traçaram, nunca saberemos ao certo.

 
Certo, mesmo, é que Laika não quis fugir, algures no meio de nada.

 
As deusas não fogem, muito menos morrem!

 
Luís Pessoa

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