PUBLICADO
NA ANTOLOGIA DE CONTOS
“SOB
UM OLHAR FELINO” – EDIÇÃO “FONTE DA PALAVRA”
2012
A HORA MALDITA
LUÍS PESSOA
Fidalgo estugou o passo e seguiu rapidamente para a Sé
ao encontro do seu antigo colega do Liceu de Viseu, Eugénio, mas a tarefa não
era fácil perante os milhares de pessoas que para lá se dirigiam também, entoando,
aqui e ali, cânticos e loas ao “Anjo”, ao “Santo”…
Rompendo pela multidão chegou à base do cruzeiro,
estrategicamente colocado no centro da praça e que funcionava como um relógio
de sol, que milhares de vezes servira, na sua infância, de local de
brincadeiras, noite dentro, após a catequese que era ministrada no claustro da
Sé.
Lá encontrou, encostado ao cruzeiro granítico, o seu
amigo Eugénio, irmão do alvo dos cânticos.
- Que se passa? Como é que o teu irmão está ali?
O “ali” era a torre do relógio da Sé, bem lá no alto,
onde um corpo pequeno e magro se expunha à multidão respeitosa, enquanto alguns
vultos encapuçados se vislumbravam junto ao enorme sino, atrás dele, como que
formando uma guarda de honra.
- Não vês? O meu irmão foi libertado, está ali e o
Povo, de todos os lados, acorre para o saudar!
- Não é possível, Eugénio, porquê?
- Não entenderias. Tentei fazer-te ver enquanto era
tempo, agora é tarde demais, isto foi mais longe do que devia…
- Tarde demais para quê? Limitei-me a cumprir o meu
dever, não me restava mais nada. Avisei-te…
- É, nunca conseguirias entender, Fidalgo!
Tudo começara há algum tempo, quando o Inspector
Fidalgo procurou o Eugénio para, entre recordações de loucas aventuras liceais,
com fugas atribuladas, encontros e desencontros, lhe dizer que estava a
investigar um caso muito complexo, relacionado com drogas vindas do exterior,
em que o seu irmão Januário aparecia como um dos protagonistas. Em nome da
velha amizade que sempre cultivaram, não queria fazer nada sem o avisar e
tentar perceber o porquê dessa atitude.
- O teu irmão Januário, atravessa-se na minha
investigação, aparece como figura central, o que vai conduzir ao seu
envolvimento em todo este caso. O que faz ele agora?
- É médico.
- Ele era esquisito na altura em que o conheci no
Liceu, muito senhor do seu nariz, não convivia, não comunicava…
- Não o reconhecerias hoje, está completamente mudado,
é um médico respeitado. Mais, é adorado por toda a gente, sabe ouvir, tem a
palavra certa no momento certo, é um modelo e um guia para toda esta pobre gente
beiroa. Nunca nega os seus serviços, quer as pessoas possam pagar quer não. Faz
hoje o que sempre ambicionou fazer.
- Eugénio, ele está envolvido num esquema muito
complicado e quero que saibas que tenho de cumprir a minha missão, tenho
responsabilidades, entendes? Não percebo como enveredou por traficar drogas se
é tão querido por todos! Mas não posso pactuar com situações destas, entendes?
- Sim, mas digo-te já que ele não consome e muito
menos trafica drogas e não aceitará nenhuma alteração de rumo na sua vida,
foi-lhe muito doloroso chegar onde chegou e conquistar a estima e o amor de
toda esta população. Quem se poderá gabar disso, diz-me cá?
- Conquistar a estima, Eugénio, mas à custa de quê?
Não entendo, ele está envolvido em negócios de tráfico de drogas, não é em
coisas menores! Há pagamentos dele a traficantes, há provas! Ó Eugénio, a sério
que não entendo, como é que se é estimado a passar drogas, será a fornecê-las à
borla? Não percebo! Olha, em nome da nossa amizade, tinha que te dizer isto, se
quiseres fala com ele, porque eu não poderei fazer nada e vai doer a quem doer…
- Fidalgo, tu não entendes quem é o Januário. Se o
pudesses conhecer… E eu não te posso ajudar, há um pacto que jurei cumprir.
Dias depois, na sequência da investigação, uma vaga de
prisões, levava para trás das grades alguns dos implicados, entre os quais o
médico Januário, sem dúvida o mais mediático.
A imprensa nacional, mas sobretudo a regional fez eco
do desmantelamento de uma rede de tráfico de novos tipos de drogas, da prisão
dos seus membros, com muitos contornos sórdidos e especulações suficientes para
causar a perplexidade de quem só naquele momento soube do caso.
De todos os cantos das Beiras ecoaram, no entanto,
gritos de revolta, que, a pouco e pouco, se transformaram em luta acesa, com
apelos à mobilização contra a “injustiça” da prisão do “santo”, do “anjo”.
Parecia que ninguém acreditava no seu envolvimento, ou que todos sabiam de alguma
coisa que não podiam ou queriam contar.
E naquele dia de quente Maio, uma multidão anónima, quase
silenciosa, calma, ordeira, numa paz inusitada, tomou os caminhos das serras,
rumo à cidade. De todos os cantos apareceram gentes, do Douro ao Mondego, das Espanhas
ao mar…
Os arruamentos foram-se enchendo de gente e a porta da
penitenciária foi aberta de par em par, de lá saindo um vulto franzino,
insignificante, embrulhado numa túnica, aconchegando nos braços um enorme e
esplendido gato preto, pelo sedoso e brilhante, seguido de alguns presidiários invulgarmente
calmos, absortos na figura mirrada que os precedia, como que fascinados. Os
olhos do gato faiscavam, numa luz intensa que se sobrepunha à luminosidade do
dia acalorado.
Em cortejo, percorreram os caminhos da Sé, por entre
alas de rostos maravilhados que logo se alinhavam atrás do “santo” após a sua
passagem, perante a incredulidade dos agentes policiais, completamente
incapazes de agirem, como que enredados numa teia poderosa que o calor
abrasador e tempestuoso mais acentuava.
Os guardiães do templo saíram alvoraçados para impedirem
a entrada do “santo”, mas também a sua determinação foi vergada quase de
imediato por força invisível e misteriosa, quedando-se de joelhos, um após outro,
franqueando a pesada porta e dando passagem ao cortejo. Que estranha força era
aquela, de onde irradiava, daquele ser franzino e discreto à vista e ao
contacto, ou daquele magnífico felino lustroso, simultaneamente tranquilizador
e selvagem?
Já no alto da torre, o vulto franzino abriu os braços
perante a multidão, dando largas ao felino que logo pulou para o sino, num
salto magistral e dominador, parecendo absorver no seu olhar fulminante, todos
os olhos que se fixavam na cena que ali se desenrolava.
Com voz sumida, mas audível, dirigiu-se aos seus
seguidores:
- Meus Amigos, ide para vossas casas. O que estais a
fazer não está certo. Não mereço a vossa presença, não sou santo nem demónio,
sou como todos vós!
E um coro de milhares de vozes ecoou na vetusta praça granítica:
- Santo! Santo! Santo!
O gato miou, em quase desespero, pareceu maior que
nunca, trepou para a cúpula, dominando toda a praça, abriu a boca, mostrando
uns dentes alvos, em contraste com o pelo escuro como breu, brilhante como
diamante polido e rosnou altivamente, dominador…
- Não, não, sou como vocês! Sabem quem sou, o que faço
e porque o faço, isso chega-me e reconforta-me. Infringi as leis dos homens e
dizem que tenho de pagar a minha dívida, mas não infringi as leis dos vossos
corações e agradeço-vos por isso. Estais aqui porque quisestes vir, ninguém vos
obrigou. Devo-vos isso. Parti, porque também eu tenho que partir! Ide para
casa!
- Santo! Santo! Santo!
Os homens que o acompanharam na caminhada e na subida
ao campanário, chegaram-se mais à frente, aproximaram-se mais dele,
ajoelharam-se como que a pedir perdão e depois de receberem um aceno aprovador
e umas quantas palavras que se perderam no ar, precipitaram-no do alto da torre.
A queda desamparada nos degraus da escadaria monumental
ocorreu no preciso momento em que um raio varreu os céus escurecidos, perante o
silêncio sepulcral da multidão, que ajoelhou num gesto único. No momento
seguinte, o ribombar do trovão abanou os ares e uma chuva diluviana abateu-se
sobre aquela multidão muda e imóvel.
Em completo êxtase, Fidalgo não conseguia desviar o
olhar da torre onde o relógio marcava a hora maldita, como se o Januário ainda
lá estivesse e só despertou do torpor em que se encontrava para seguir Eugénio
quando este virou as costas à Sé e caminhou, determinado, por entre a multidão
de joelhos, para fora da praça.
No silêncio ensurdecedor da cidade perdida no tempo e
no espaço, só os passos dos dois amigos se faziam ouvir por sobre o ruído da
chuva diluviana, enquanto subiam as escadas para casa de Eugénio, deixando
atrás de si um sinuoso rasto aquoso. Já na sala, sem uma única palavra, sem um
único sinal de emoção, este abriu um armário envidraçado e de lá retirou um DVD
que pôs a correr…
Januário estava sentado junto de uma senhora com
aparência de muito doente, algures numa casa humilde, sem janelas, iluminada
por velas trémulas, perante rostos fechados e tristes.
- Dona Arminda, minha querida, está aqui com todos os
seus familiares e amigos da aldeia, como sempre quis. Quero ter a certeza de
que a senhora sabe bem o que se está a passar e o que me pede para fazer.
- Sim, senhor doutor. – Balbuciou com muito custo.
- Dona Arminda, só o seu desejo conta para mim, nada
mais. Só a senhora pode decidir, percebe?
- Sim.
- Diga-me, pois, perante toda a sua família e amigos
se é mesmo o que pretende?
- Sim, senhor doutor, é o que quero…
- Dona Arminda, peço-lhe que pense bem, os padres e a
igreja dizem que é um terrível pecado, pense bem, por favor.
- Senhor doutor, estou pronta.
- Dona Arminda, não quer despedir-se dos seus filhos e
netos?
- Sim, senhor doutor, que Deus os abençoe e a si pela
sua bondade…
- Adeus, Dona Arminda, não vai sentir nada, vai apenas
adormecer.
- Que Deus o abençoe, senhor doutor…
À medida que o líquido era introduzido na veia e a paz
descia placidamente àquele corpo martirizado pela doença, o sofrimento era bem
visível no rosto do médico e algumas lágrimas escorriam-lhe pela face, enquanto
afagava carinhosamente os cabelos da pobre senhora…
Uma das pessoas presentes aproximou-se e disse-lhe
baixinho:
- Obrigado, senhor doutor, era a vontade da minha avó
e só desejo, se vier a estar como ela, ter um santo como o doutor junto de mim…
Fez-se um silêncio sepulcral…
- Eugénio? E o gato?
- Gato? Qual gato, Fidalgo?