OUÇAM O SILÊNCIO...
OUÇAM BEM...
QUE EU VOU CONTINUAR A G R I T A R!
DA ANTOLOGIA DE 2012
TOMEM LÁ UM CONTO:
O SONHO DE LEOCÁDIA
Conto de Luís Pessoa
Sempre que o sol rompia,
esfarelando a finíssima teia nevoenta que o frio da noite tecera, a vida
retomava o seu ciclo por entre algazarras juvenis e espreguiçadelas
amadurecidas nos anos.
A vida familiar era assim mesmo,
marcada pela sucessão do dia e da noite, pela presença e pela ausência, pela
penúria e pela abundância e Leocádia sabia isso perfeitamente.
- Leocádia, todo o cuidado é
pouco. Presta atenção ao que te digo…
Os alertas mil vezes repetidos,
ora pelo pai, ora pela mãe, encontravam o eco que Leocádia entendia merecerem,
ou seja, nenhum.
Se a vida era bela, os odores da
terra e do lago, do céu e da floresta traziam no seu seio a inebriante frescura
da paz, se tinha a certeza de ser aquela que os
deusas escolheram para ser feliz e capaz de arrostar todas as improváveis
adversidades, que razões poderiam ter os pais
para tantos avisos?
E todos os dias a cena se
repetia, quando eles saíam em busca do sustento de toda a família.
Leocádia brincava descuidadamente
com o irmão, rebolando pela encosta, saltitando alegremente, sorvendo cada
segundo, enquanto o irmão se ia revelando mais maduro, mais atento ao mundo e
aos perigos que sempre rodeiam os jovens. Leonel já sentia as transformações
que o seu corpo operava e as formas que a Leocádia exibia, ainda que esta não
parecesse notar. A infância fora-se, de forma rápida e o mundo parecia ter
mudado ao mesmo ritmo. Só os avisos dos pais se mantinham inalterados, em
apelos cada vez mais insistentes para que todos os sentidos estivessem sempre
no máximo de concentração.
Leonel apreendeu, Leocádia
ignorou.
Um dia os pais não regressaram e
Leonel anunciou que se ia embora.
Sozinha, Leocádia viu chegada a
sua hora, porque nunca fora o que os pais queriam que ela fosse, porque era
ela, aquela que acreditava, melhor, que sabia ser a eleita pelos deuses e que
nada nem ninguém podia destruir ou sequer perturbar.
E iniciou a sua grande viagem,
pela madrugada.
--o--
Sara, vivia no fausto do seu
apartamento, bem no centro da cidade e de lá irradiava beleza e falta de
sentido de vida. Nada nem ninguém a entusiasmava e só umas tantas jóias,
vestidos sumptuosos, casacos de pele caríssimos e outros artifícios lhe
despertavam, ainda, algum sentimento.
João, arquitecto de obras nunca
feitas, herdeiro natural de fortunas que não conquistou, era o eleito do
coração de Sara, pelo menos por agora, enquanto diamantes e riquezas brotassem
das mãos bem tratadas, que nunca conheceram trabalho.
Naquele princípio de tarde, ao
acordar após uma noite particularmente agitada, com baile de gala e champanhe
francês em abundância, Sara ergueu os olhos ao céu do quarto e não se sentiu…
- Não sou Sara… Não sou…
Ergueu-se deslumbrante, felina,
magnífica, como só as deusas sabem ser, exibindo a graça e a feminilidade dos
seres abençoados, rasgando o silêncio com um suave ronronar, atravessado a
espaços, por rugidos de amantes entrelaçados.
A porta abriu-se e
sorrateiramente, João entrou para dar o costumado beijo à sua amada, mas não a
reconheceu.
Viu Milinha, a gata de estimação
em estado de choque, hipnotizada, como que em adoração a uma divindade
maravilhosa, cintilante na sua auréola…
João não teve medo, não gritou,
não pediu ajuda, apenas se inclinou, respeitoso, quase reverente, submerso no
mar imenso de luminosidade, antes de cair de joelhos, erguendo as mãos em
prece, até tocar a pelagem sedosa, brilhante, imaculada, de uma beleza que
ultrapassava a imaginação.
Fora precisamente para isso que
comprara aquela pele maravilhosa a um caçador furtivo, recentemente regressado
de África, que lhe jurou ter visto a majestosa fêmea chorar, quando a
surpreendeu, distraída…
- Não exactamente distraída, mas
sonhadora! – Afirmara-lhe ele.
João vivia o sonho, finalmente,
deslumbrado e manietado, balbuciando um nome que nunca ouvira:
- Leocádia!... Leocádia, meu
amor!...
Mais uma prosa maravilhosa. Um conto de se lhe tirar o chapéu. Camacho
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