PUBLICADO NA
ANTOLOGIA DE CONTOS
“CACHORROS,
CACHORRINHOS” – EDIÇÃO “HUGIN”- 2002
LAIKA, DEUSA DO
ESPAÇO
CONTO DE: LUÍS PESSOA
Alexander levantou-se, meio
combalido e não deixou de mandar um grito, misto de alegria e dor:
Laika, larga! Laika!
A cadela, olhos brilhantes e
cauda ondulante, deu mais uma volta no ar e atirou-se de novo sobre o rapaz,
deixando-o quase sem fôlego.
Erik e Ludmila, sentados a um
canto, fora do palco em que se desenrolava toda a acção, sorriam com as
traquinices da cadela.
Erik, achas mesmo que a Laika vai para o
Espaço? – Interrogou Ludmila, com voz sumida.
Creio que sim, ela está preparada para isso…
A “luta” acabou e Alexander e
Laika juntaram-se aos outros dois, ofegantes mas irradiando uma felicidade
contagiante.
A história começara há algum
tempo atrás, quando o pai de Erik apareceu em casa com a cadela, que
prontamente foi adoptada, não só pela família, mas também por toda a
vizinhança. Uma cadela banal, normal, mas transportadora de uma enorme carga:
Fora seleccionada para ir ao Espaço.
O pai de Erik trabalhava no
projecto espacial desde há alguns anos e fora-lhe incumbida a tarefa de
encontrar o cão apropriado para essa aventura.
Escolhera Laika.
Desde essa altura, Erik
mostrava-se preocupado e as notas na escola sofreram uma acentuada queda, o que
fez com que o pai tivesse uma longa conversa com ele, que se centrou,
naturalmente, na situação da cadela.
O pai fez ver a Erik que a Laika
não era dele, nem de ninguém, mas de todos os habitantes do Mundo e que ia
cumprir uma missão que só estava ao alcance dos grandes heróis. Seria venerada
para todo o sempre, como exemplo de heroicidade e abnegação, motivo de todos os
orgulhos.
Pai, a Laika vai voltar?
Olha, filho… - longa hesitação perante aquele
olhar quase suplicante de uma resposta positiva – ninguém pode dizer o que se
vai passar…
Mas volta, pai?
Sim, filho, vai voltar! – mentiu.
Os medos foram atenuados e tudo
parecia correr bem, até ao momento em que Ludmila apareceu com a triste
notícia:
Ouvi o teu pai dizer que nem sabe como é que
te há-de contar que a Laika não pode regressar. Estás a ouvir, Erik, a Laika
vai morrer lá em cima…
Não, nunca! O meu pai nunca me mentiu e não o
ia fazer agora… Não acredito!
Erik, juro-te que é verdade!
Temos de fazer alguma coisa! – interrompeu o
Alexander. – A Ludmila não ia mentir ou brincar com isto. O teu pai não te
contou tudo… Temos de esconder a Laika, levá-la para longe daqui, não sei…
Talvez para casa da minha tia.
A angústia espalhou-se por aquela
três criaturas e um milhão de hipóteses varreu, em turbilhão, aquelas
cabecitas, ainda puras no pensar e ingénuas nos propósitos.,
É isso! – gritou Erik. – Vamos fugir com ela,
apanhamos o comboio, escondemo-nos no furgão das cargas e vamos embora. Assim
não a apanham!
Boa, vai buscar a Laika, Alexander, enquanto
eu preparo alguma coisa para comermos, nós e a Laika!
Cerca de quinze minutos depois,
os três miúdos estavam prontos, com a Laika presa pela trela e decididos a
tudo.
O pai de Erik não falara de
grande aventura? Pois era o que ia acontecer, sem ter de mandar a Laika para o
Espaço!
O sol já ia alto quando chegaram
à estação de comboios. Ludmila morava ali perto e sabia os horários e as linhas
de onde partiam todas as composições e assim não houve enganos nem complicações.
Horas depois, dois cenários se
desenhavam: No comboio as crianças dormiam ao redor de Laika, em busca de um
pouco de calor, que as temperaturas negativas e a falta de conforto, não
propiciavam; Lá longe, umas centenas de quilómetros atrás, várias famílias
procuravam-nos, tentando perceber o que os fizera largar tudo e partir.
Só o pai de Erik sabia…
Com o alarme dado, com todas as
autoridades no seu encalço, porque eram apenas crianças com uma cadela, não foi
particularmente difícil encontrá-los, lá longe, onde o gelo, a neve, a fome e o
frio imperavam.
Numa última e desesperada
tentativa, Erik falou com Laika e contou-lhe tudo, contou-lhe que a queriam
mandar para o Espaço, que o pai lhe mentira e que ela jamais poderia regressar
à Terra, que estava condenada à morte e que tinha de fugir a todo o custo.
Eles andam à nossa procura, não de ti, Laika!
Vai embora, corre, esconde-te, procura um rapaz que te possa defender melhor
que eu, vai embora!
As lágrimas escorriam pela face
do garoto, perante a incredulidade dos polícias que presenciavam a cena, sem
nada entenderem. Um deles chegou mesmo a simular um pontapé na cadela, para a
afastar, mas sem êxito.
Acabaram todos recambiados para a
origem, onde foram recebidos com natural alívio pelas famílias.
Meses depois, a 3 de Novembro de
1957, num dia muito frio, Laika cumpriu o seu destino trágico, ela que se
recusara a fugir enquanto podia.
Durante uma semana inteira, Laika
vagueou no Espaço, onde nunca estivera qualquer ser terrestre.
Durante todo esse tempo, três
pares de olhos mantiveram-se dirigidos para o alto, para o céu estrelado,
procurando o ponto luminoso, muito brilhante, que transportava a sua amiga.
Foi então que tudo acabou para
Laika, quando ingeriu a sua última ração alimentar, que continha uma poderosa
droga que a fez mergulhar no sono eterno e repentinamente, em toda a Terra,
milhões e milhões de cães, lobos, coiotes, lancinaram os ares com uivos,
enquanto o céu era atravessado por milhares de estrelas cadentes, numa
homenagem à Deusa do Espaço.
Menos de três anos depois, a 19
de Março de 1960, os três amigos inseparáveis estavam de olhos no ar para
assistir à partida de mais amigos seus, Belka e Strelka, dois alegres cães, que
após um dia no Espaço, regressaram sãos e salvos, cumprindo-se a promessa feita
pelo pai de Erik, de que todos os cães passariam a ter a hipótese de voltar e
só se alguma coisa corresse mal, não regressariam, como veio a acontecer a 1 de
Dezembro desse mesmo ano, quando Pchelka e Mushka viram a sua reentrada na
atmosfera falhada e por lá morreram…
Heróis ou apenas cães obrigados a
cumprir um destino que os homens lhes traçaram, nunca saberemos ao certo.
Certo, mesmo, é que Laika não
quis fugir, algures no meio de nada.
As deusas não fogem, muito menos
morrem!
Luís Pessoa
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